terça-feira, 4 de setembro de 2018

A parada errada e o perfume de estudantes


Já estou na faculdade e a minha mente está em movimento frenético. Impossível competir com sua velocidade, mas não me custa tentar. Custa?

Talvez custe muito, pois o teclado não ajuda. Faz barulho e incomoda quem por perto está. E incomoda a mim, que não gosto de incomodar. A cadeira é muito boa, mas também não me favorece. Por Deus! Por que é tão difícil encontrar, fora de casa, um bom lugar para escrever?

Mas a danada da inspiração só quer me vir quando estou pela rua, sobretudo de ônibus, que é, para mim, o melhor lugar para pensar. Minha família não gosta de jeito nenhum quando eu não saio de carro, mas o que eu posso fazer se nasci escritora? Deixar de andar de ônibus é, para mim, como ser um Auxiliar Administrativo que não vai ao escritório. Ou como um agricultor que não visita outras terras. E foram muitos pensamentos para hoje. Não recordo o dia que eu pensei tanto, tanto, e numa velocidade tão forte e intensa como nessa tarde quase noite. 

Eu comecei pensando no que já vinha pensando antes de sair de casa. E desses pensamentos não falarei agora. Outrora você, leitor, reconhecerá tais pensamentos noutros textos. Ou não. Enfim. Eu comecei pensando no quão maravilhoso foi o dia, que não foi tão maravilhoso, mas que me fez passar o hidrocor em todas as atividades que me comprometi comigo mesma que eu realizaria antes das 17hs. Eu consegui, então poderia dizer que o dia foi maravilhoso, dado vista o quão raro é de isso acontecer. No entanto, pensei nos atrasos de poucos minutos causados por não encontrar meu cartão de passagem, por não conseguir fazer uma ligação e por ter de passar na padaria para pagar o pão que meu pai comprou mais cedo. 

Cheguei ao ponto de ônibus e já escurecia. Não foi assim que planejei. Será que o ônibus demoraria? Que viria lotado e eu não teria onde sentar para ler Clarice Lispector? Chegou e veio vazio. Sentei no lugar mais apertado, mas tudo bem. Agarrei-me ao livro e adentrei nos escritos de tal forma que vez ou outra, ao olhar para fora da janela, assustava-me com a possibilidade de já ter passado, e muito, da parada que eu desceria. Mas não passava. Não passava. Nem perto estava. Mas eu adentrava nos escritos e de tempo em tempo pegava-me assustada com o que acontecia fora; do livro, do ônibus e de mim. Tentei relaxar e notei que me excedi no relaxamento. Tentei prestar atenção ao momento de descer e, logo, logo, eu desceria.

Foi num pulo que certamente o rapaz bonito que estava na fila de descida estranhou. Como que alguém consegue descer do ônibus ainda com os olhos cravados no livro? Só eu, meu Deus, para conseguir tal coisa? E fiquei grata por isso. Por conseguir sair do ônibus sem perder uma vírgula da minha leitura. Mas, calma. Desci na parada errada. Tanta agonia e tentativas de ter atenção... Se eu pelo menos houvesse descido uma parada depois, mas não. Desci uma antes. 

E me culpei por isso. Martelei meu juízo com isso. Não apenas teria que andar mais, mas, o principal, é que por mais tempo ficaria sem acessar o livro. E eu queria lê-lo por demais. Degustar cada fragmento de texto. Clarice quando me toma me rende. E eu estava presa. Eu estava presa e solta por aí, a andar pela Boa Vista em passos apressados como se a calçada por onde eu passava tivesse dentro da minha cabeça, e não abaixo dos meus pés. 

Até que, uma visão me parou. Um cheiro me preencheu. Meus pensamentos saíram do livro, que passeava em minhas mãos, e foram ao encontro da avenida e seus encantos. 

Vi um rapaz com piercing no rosto e cabelo amarelo. Praticamente idêntico ao Alex (Miles Heizer) da série 13 Reasons Why. Deu-me forte vontade de abraçá-lo, de eu ser adolescente de novo. Logo depois vi uma lanchonete de coxinhas. Que vontade de comer! Pensei no sanduíche que meu pai preparou enquanto eu me banhava para sair.

Meus passos tão ágeis não chegavam nem perto dos meus pensamentos. Eu diria que foi esse o momento exato que me fez escrever esse relato. Foi aí, bem nesse momento, que eu andava rápido e leve como uma pena que voa que decidi escrever isso aqui. Um cheiro me paralisou como quem coloca a cena em câmera lenta. Perfumes de estudantes, foi o que anotei no bloquinho da minha mente para depois eu me lembrar. E das pipocas, complementei. Logo depois veio o rapaz com cabelo em corte moicano e topete, parecendo um mistura de Júnior Lima e Elvis Presley. Eu queria lembrar com exatidão o que foi que pensei depois dessa cena... Sei que nesse momento adentrei o estacionamento da faculdade e senti a leveza da segurança que é não estar tão vulnerável à violência da rua. Sempre sinto isso quando chego.

E nesse misto de sentidos – cheiros e visões – e pensamentos, e paz, e tudo, notei uma mulher caminhando apressada ao meu lado. Suas passadas combinavam com as minhas, mas não nos conhecíamos. Estávamos juntas, mas sozinhas. Porém, de fato, nós nunca estamos sós se a nossa cabeça está em nosso corpo. Se a mente nos acompanha, para o bem ou, inevitavelmente, para o mal. 

Eu precisava chegar logo. Eu precisava chegar urgentemente e transferir para o papel ou para a tela tudo isso que vos conto. E quase me atropelo em mim mesma e nos meus pensamentos. E ia mesmo ser um atropelamento. Eu ia perder a parada do ônibus, quem dirá a passada dos pés. Calçava um tênis de corrida, de praticar exercícios. Não conseguia frear nem a pau.


Um texto de Aline Menezes, criadora do Blog O Quarto de Aline

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